Criação de Cavalos Pantaneiros une tradição e tecnologia em MS

Prospyre Batari Frash
By Prospyre Batari Frash 17 Min Read

Nas épocas de cheia, geralmente entre janeiro e março, as terras secas do Pantanal da Nhecolândia são substituídas por planícies inundadas. Para cavalos de diversas espécies, os diferentes fenômenos naturais são complicados. Os cascos não são tão duros e a resistência às mudanças climáticas é baixa. Para os Cavalos Pantaneiros, o cenário descrito é ideal.

A espécie resistente é uma tradição da família Bacchi. O pecuarista Ayrton Bacchi de Araújo Netto, proprietário da Fazenda São Bento da Marajoara II, é um dos integrantes da terceira geração familiar que cria essa raça. “Meus avós sempre foram apaixonados por cavalos. No começo da criação deles, mexiam com Cavalo Árabe, o cavalo de corrida. Um dia, em uma comitiva de seis funcionários, onde vendiam cavalos e touros para comprar gado, saíram de Sidrolândia e foram bater lá em Mimoso e Poconé [municípios de Mato Grosso]”, conta.

Foi com o Pombinho, cavalo garanhão, que Ayrton Bacchi de Araújo, avô do pecuarista, iniciou a tradição que vigora na família há mais de meio século. Na propriedade a cerca de 80 quilômetros de Rio Negro, o pecuarista se orgulha do legado dos avós. “Um dos capatazes ficou impressionado com a qualidade dos cavalos que conheceu em Mimoso e Poconé, e relatou isso para o meu avô, e meu avô ficou muito curioso e pediu para trazer um cavalo. Na viagem trouxeram Pombinho, primeiro cavalo pantaneiro garanhão, que entrou na família Bacchi”, detalha Ayrton Bacchi.

A criação dos animais foi tão promissora que a família resolveu investir na marca Coqueiro, que identifica os exemplares nascidos no criatório Bacchi. “Ele [avô] conversou com minha avó, e foram buscar mais éguas e mais cavalos. Começou com meus avós, passou para o meu pai, meu tio e, agora está na terceira geração. Eu, meu irmão e minha irmã passaremos para a geração seguinte”, projeta.

No caso dos Cavalos Pantaneiros, até o corte da crina rente ao pelo e o rabo desfiado foram estrategicamente pensados para melhorar o desempenho da espécie. O pecuarista explica que a higiene dos animais e até mesmo a habilidade para lidar com os períodos de cheia são aspectos melhorados.

Animais seletos -Conforme Ayrton Bacchi, a lida diária com os cavalos no Pantanal conta com uma aliada natural para selecionar os melhores animais. “O Cavalo Pantaneiro é resultado da seleção natural. E não tem nada mais sábio do que a mãe natureza”, reconhece.

O pecuarista ressalta que essa espécie de cavalo foi selecionada naturalmente. “seleção natural é drástica, porque aquele que não consegue correr do fogo morre queimado, aquele que não é bom nadador morre afogado, aquele que não tem bons movimentos para procurar boas pastagens vai morrer de fome, o potrinho novinho que não consegue andar atrás das éguas e fugir da enchente vai morrer afogado. E o que sobrevive passou por um funil de seleção, e o sobrevivente tem um casco duro, tem capacidade respiratória muito boa, sabe comer muito bem”, diferencia.

De acordo com Ayrton, após o processo de seleção natural, inicia-se, por meio de interferência humana, o direcionamento para se ter um cavalo de bom temperamento, para a lida no campo com o gado. “O cavalo é resultado de uma seleção natural, mas hoje os criatórios têm as suas seleções conforme a determinação da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Pantaneiro. Eles procuram um cavalo dócil, um cavalo funcional, que seja tratado para trabalho no campo”, completa.

Além de comitivas, um dos pontos fortes dos Cavalos Pantaneiros é a habilidade com o esporte. O pecuarista enfatiza que a Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Pantaneiro (ABCCP) tem direcionado o Cavalo Pantaneiro para competições. “A gente já tem tido resultados excelentes. Eu sou amante do bom cavalo. Tenho a minha criação de cavalo pantaneiro e não troco. Devagar a gente tem conseguido colocar os animais em disputas com qualquer outra raça, isso é bem representativo”, acredita.

De fato, o inspetor genealógico da ABCCP, Alexandre Penna, acredita que as competições entre os animais, em âmbito nacional, são necessárias para propagar e incentivar a criação de Cavalo Pantaneiro, além de conquistar o mercado brasileiro. “É pouco difundido nas provas, mas é um cavalo nosso. O Cavalo Pantaneiro está mostrando o seu valor, conquistando o seu espaço na equinocultura nacional, sendo um cavalo funcional, um cavalo que ajuda na lida, porque é um cavalo trabalhador. Então, a associação faz um trabalho para expandir a raça no território nacional”, destaca.

Dados da ABCCP apontam a existência de cinco mil cavalos pantaneiros puros registrados na entidade e 130 criadores espalhados em 21 sub-regiões do Brasil. Porém, pesquisa feita pela entidade mostra, também, que o número total estimado de equinos, no Pantanal, é 100 mil, revelando uma grande quantidade de animais mestiços.

De acordo com Alexandre Penna, o Cavalo Pantaneiro está presente na planície pantaneira na região de Corumbá, um dos maiores municípios do estado e onde está presente o maior rebanho de Mato Grosso do Sul. “Ele [Cavalo Pantaneiro] se torna uma peça muito importante para criação bovina, que sustenta todo Mato Grosso do Sul, principalmente pela sua rusticidade. Nesses novos saneamentos de criatórios, o animal, além de tudo, por ser mais útil, por ser mais funcional, tem ajudado muito nas fazendas para manter e tomar conta desse rebanho enorme, no maior município do estado”, afirma.

Segundo Penna, o custo da manutenção do Cavalo Pantaneiro é baixo, mesmo se for uma criação extensiva. “Os animais ficam nas planícies inundáveis, na parte de vazante onde o espaço é mais macio e eles se adaptam melhor, então, não tem muita complicação para manter o cavalo nessas circunstâncias”, explica.

Trabalho conjunto – O trabalho em equipe realizado por Ayrton e seus quatro funcionários, como ele mesmo denomina é o diferencial da Fazenda São Bento do Marajoara II. Catarina Silva Pinto, de 46 anos, é cozinheira há cerca de um ano no local, alimenta diariamente Elberty Jober Carmo Santos, de 29 anos, o ‘Jober’, Joadilson Pereira da Silva, de 36 anos, o ‘Dui’, e Javandil Luiz Pereira de Souza, de 46 anos o ‘Buiu’. “Tem que ser refeições reforçadas, porque o trabalho é puxado”, explica Ayrton.

Jober e Dui diariamente assumem a responsabilidade de cuidar dos gados e cavalos da fazenda, explica o mais novo. Junto à Catarina, são registrados e trabalham com carteira assinada na propriedade rural. No caso de Buiu, o cenário é diferente. Em conversa com Dui, o funcionário, que é sobrinho de Javandil, explicou que o tio atualmente presta serviços de diarista, e não como empregado rural, isso porque mora com a família, esposa e filhas, no Mato Grosso e não tem pretensões de sair de lá.

Do lado do empregador, Ayrton afirma que faz questão de registrar todos os funcionários, como forma de garantir meios de trabalho dignos a todos. “Isso [funcionários registrados] está um pouco flutuante no Pantanal. Essa acessibilidade entre os patrões e os empregados, onde eles vão ter décimo terceiro, carteira assinada. Daí para frente, eles vão ter um futuro vantajoso. Mas, ainda, não está muito inserido na cultura pantaneira de que é, de fato, vantajoso”, comenta.

Sem o trabalho diário dos quatro, a São Bento da Marajoara II não funcionaria do mesmo jeito. O pecuarista reconhece os funcionários como entendedores de suas funções e confia na atuação deles como essencial. “Tenho que valorizar muito os meus funcionários. Eu digo ‘funcionários’ porque não gosto do termo peão. Eles têm a mente aberta para entender o trabalho, para entender o que é bom para ele e para os animais”, declara.

Além dos “funcionários padrões”, a médica veterinária, empresária e companheira de Ayrton há mais de 10 anos, Roberta Andrade Machado Borges e a filha dela, Anna Andrade Correa, que desafiam os estereótipos e se tornaram protagonistas de suas próprias histórias, integram a força conjunta que auxilia o pecuarista a tocar os negócios. Anna, ainda, é competidora de laço comprido e realiza as competições nos Cavalos Pantaneiros.

Tradição e Tecnologia – Ayrton Bacchi explica que a tecnologia é um processo natural do agronegócio. Para o pecuarista, a própria residência e os segmentos da fazenda são exemplos ideais da fusão entre as tradições pantaneiras e o acompanhamento rural do avanço tecnológico. “Dois dias aqui andando na minha casa dá para ver essa fusão muito bacana. Meus funcionários andam a cavalo, sempre muito bem trajados no sistema pantaneiro, vão para o campo em Cavalo Pantaneiro. Chegam lá e dão um tratamento digno aos animais, sabem técnicas, utilizam processos tecnológicos. Não tem porque ter um pé no passado e não ter no futuro”, comenta.

O diretor de Infraestrutura e Segurança da Agência Municipal de Tecnologia da Informação e Inovação (Agetec), Jeferson Bussula Pinheiro afirma que a mecanização do meio rural é essencial para a produção a nível global. “Existe uma constante necessidade de sempre produzir cada vez mais alimentos para atender a demanda mundial. Ao longo dos anos, a necessidade de produzir cada vez mais desencadeou uma corrida por novas tecnologias para uso no campo e grandes modificações significativas surgiram. A evolução da produção é fruto da tecnologia que está acontecendo de forma intensa e transformadora”, afirma.

E realmente, os funcionários da Fazenda São Bento de Marajoara II levam a tecnologia de maneira natural para as funções diárias. No processo de cura dos bezerros, por exemplo, onde os filhotes de gado são vermifugados e contabilizados quanto ao gênero, Dui deixou a técnica de contar os bezerros machos e fêmeas com risquinhos feitos na madeira para adotar a contagem em bloco de notas do celular.

“Hoje em dia é tudo integrado no campo. Não só aqui, mas em grande parte das fazendas. A gente sempre vê funcionários com celular até em cima dos cavalos. Não tem como fugir disso”, ressalta Ayrton.

A modernidade que Ayrton salienta vai ao encontro do entendimento que o diretor da Agetec expõe, quando sustenta que além da produção em larga escala, a mecanização trouxe uma agilidade na captura e análise dos dados. Isso aliado à aplicabilidade da velocidade das possíveis respostas a serem implantadas. “Para implantar a mecanização no agronegócio, devemos muito ao desenvolvimento de tecnologias”, declara Bussula.

O inspetor genealógico da ABCCP também é um entusiasta da fusão entre a tradição e a tecnologia no campo, especialmente quando o assunto é a criação do Cavalo Pantaneiro. “A tecnologia que hoje já é permitida é a transferência de embrião, inseminação artificial. Já tem DNA nos garanhões para continuarem sendo garanhões dentro da raça. Um potro da produção de cada fazenda que cria o Cavalo Pantaneiro tem que ter o DNA coletado para comprovação. Essas tecnologias são importantes porque com elas se consegue propagar melhor um bom animal dentro da raça, até porque só nos bons animais é permitido fazer esse tipo de tecnologia, então, o uso da genética desses bons animais dentro da raça é muito importante”, avalia.

Tecnologia no campo – O diretor da Agetec coloca que o meio urbano e rural ainda são pensados como separados por muitas pessoas. “É comum o equívoco de pensar essas regiões de forma separada, como excludentes entre si. Podemos dizer que as atividades econômicas praticadas no campo dependem das práticas realizadas nas cidades e vice-versa”, comenta. No caso da tecnologia, a integração não é diferente e cresce cada vez mais no ambiente rural.

A Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Sistema Famasul) é expert quando o assunto é tecnologia no agronegócio. Além de apoiar projetos destinados ao desenvolvimento de pesquisa em ciência, como a implantação da Unidade Experimental de Pesquisa e Inovação Tecnológica de Porto Murtinho, oferece cursos gratuitos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) destinados ao incentivo do avanço tecnológico nas áreas rurais de Mato Grosso do Sul. De acordo com o gerente da Unidade Educacional do Senar/MS, Lucas Silva, a tecnologia no campo tem movimentado a agricultura em todo o país, porque segundo ele, hoje, é ferramenta indispensável. “O Brasil é pioneiro no uso dessa tecnologia, e para continuar sendo vanguarda em produtividade é necessário também constante atualização, investimento e pesquisa”, explicou.

Lucas Silva acrescentou, ainda, que o Brasil não só é protagonista na utilização de tecnologia no campo, como também supera países da União Europeia (UE) e Estados Unidos (EUA). “Por isso é importante investir em tecnologia. Vale lembrar que tecnologia não é apenas equipamento, precisa de uma mentalidade e cultura voltada aos cuidados do meio ambiente e sustentabilidade”, completou. Conforme o gerente da Unidade Educacional do Senar/MS, a tecnologia no campo lida com mudanças constantes, e para isso, existem mecanismos que facilitam essa evolução. “Precisa ter sempre a preocupação com meio ambiente. Tem que ser prioridade. Desafios no campo são constantes, e caminham conforme a produção para manter a estrutura saudável que tem no país”, ressaltou.

Dentre os pontos negativos, Lucas Silva salienta que a falta de mão de obra qualificada é preocupante. “Não tem ainda o número suficiente de pessoas qualificadas para atender a demanda. É notável que ano após ano, as mulheres vêm se tornando protagonistas no campo. Em 2019, uma pesquisa elaborada pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e publicada recentemente pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), indica que a participação feminina na agricultura familiar bateu um recorde, seguida da presença em assentamentos da reforma agrária”, afirmou, o gerente da Unidade Educacional do Senar/MS, destacando que “em Mato Grosso do Sul, não tem sido diferente: as mulheres têm estudado, se especializado, cada vez mais. No Brasil, mais de 1,5 milhão de mulheres se autodeclararam chefes de algum empreendimento rural”, finalizou.

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